terça-feira, 30 de outubro de 2012

O Deus de Maria: familiar e estranho


Clodovis Boff
O Cotidiano de Maria de Nazaré.

O mistério de Maria, porém, tinha como pano de fundo o mistério de Jesus. A mãe contracenava com o filho. Em meio às monótonas e cansativas atividades domésticas de toda mulher pobre, ela não cessava de pensar em seu filho e em seu destino.
Ele lhe parecia ser absolutamente singular, já a partir do modo como foi concebido. Depois, quando o apresentou no Templo, um velho profeta lhe falou que aquela criança seria “a luz das nações e a glória de Israel”, mas também que seria “sinal de contradição” e que por isso uma espada “trespassaria sua alma” (Lc 2, 29-35).
 Aquilo lhe ficou retinindo na alma e marcou indelevelmente seu coração, de modo que, quando rezava os salmos messiânicos, por exemplo, o 22, o 69 ou o 110, ou quando ouvia os Cantos do Servo Sofredor, já não podia olhar para Jesus e pensar em seu futuro sem um imenso sentimento de compaixão.
Humanamente falando, o destino do filho seria trágico e o dela naturalmente também. Ao lado do “Homem das dores”, ela seria a “Mãe das dores”, como as mães hebréias de ontem e de hoje, como Raquel, Rispa, a mãe macabéia e as que viram os filhos morrerem nos campos de concentração e nas câmaras de gás. Contudo, do ponto de vista de Deus – e isso era o fundamento decisivo da fé – o termo final dessa tragédia seria a Glória (Ap, 12).
O filho a surpreendia continuamente com suas reações fora do comum. De repente, sem que ninguém esperasse, proferia palavras que faziam pensar. Foi assim, quando aos 12 anos, sem prévio aviso, permaneceu inexplicavelmente no Templo, na época da Páscoa, justificando aquele estranho comportamento com uma frase ainda mais estranha: “Não sabíeis que devo ocupar-me das coisas do Pai?” (Lc 2,49).
Maria dava-se conta de que, dia após dia, aquele filho ia se subtraindo a ela. “O que vai ser desse menino?” (lc 1,66) – era a pergunta que a perseguia noite e dia. Essa interrogação era como o transfundo sobre o qual se desenrolava a vida obscura em Nazaré.
Na verdade, aquela mãe e aquele filho eram seres puros num mundo impuro. Representavam o mundo redimido em meio a um mundo não redimido. A relação entre os dois era absolutamente singular e insondável. Embora infinitamente assimétrica, entre aquelas criaturas reinava afinidade profunda em todos os planos: fisionômico, psicólogo, moral e espiritual – uma afinidade que não tinha precedentes na história. Era uma comunhão única que crescia sempre mais, pois convergia em Deus e na realização de sua santa vontade.
Na verdade, ela aprendeu com ele que a vida de afetos e de trabalhos não era a coisa última, mas sim a penúltima, tão absorvente era, para Jesus, Deus e seu projeto. Sua maior paixão era fazer a Vontade de Deus, não importando a pena ou o prazer. E sua certeza absoluta era o Reino: Deus há de reinar. E, apesar da longa e penosa caminhada que exigia, essa visão de Deus e de sua Soberania passou a ser também a visão que dominava e polarizava a alma de Maria.
“Nosso Deus foi visto na terra, convivendo com os humanos” – canta a liturgia de natal. Por ter convivido na máxima familiaridade com o Mistério, ninguém melhor que ela conheceu Jesus-homem e ao mesmo tempo o Jesus-Deus e o desconcerto abissal e exaltante que essa unidade produz no coração humano.
Se é verdade que o mistério de Deus e, mais ainda, sua irrupção na história através da encarnação, foi como um furacão que introduziu a grande perturbação na ordem do mundo, deve-se dizer que Maria viveu no olho desse furacão, que a lançava para cima e para baixo, em transportes de alegria e em angústias de morte.
Essas eram justamente “as coisas” que a Virgem “confrontava” em seu coração, buscando “compor” os aspectos opostos dessa dialética enigmática. Que tipo de Messias seria esse, um Messias que deverá herdar o trono de Davi e ao mesmo tempo salvar o povo de seus pecados? Como seu filho querido pode ser Filho do Altíssimo, no qual o Pai pôs todo o seu amor?
Maria foi a mulher que experimentou com mais intensidade a agonia dramática que produz o Mistério quando se abre sob o solo da vida cotidiana, fazendo ver por suas rachaduras, abismos vertiginosos de luz. Em tudo e por tudo, entretanto, foi uma mulher entregue, sem retorno, a Deus e seus imperscrutáveis desígnios.
Ela, que fora a maior mestra de Jesus, foi também, por sua vez, a sua maior discípula. Foi justamente na “escola da vida”, a escola mais comum e ordinária que ela foi “instruída por Deus” (Jo 6,45; 1Ts 4,9) sobre os mistérios sublimes e mais determinantes para o destino do mundo (Mc 4,11; Lc 10, 21-22).
Por isso, Maria permanece como o símbolo insuperável da fé que vive e transfigura o cotidiano, como é também a imagem perfeita da Comunidade de fé, enquanto peregrina para o Reino glorioso nos caminhos poeirentos deste mundo.

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